A linha está ocupada … apresenta obras de Alexandre Camarao, Ana Jotta, Mumtazz, Pedro Barateiro e Tomás Cunha Ferreira. São artistas que exploram diferentes práticas, como som, vídeo, escrita, desenho, têxteis, escultura, pintura, ou mesmo performance.
A heterogeneidade de elementos que constituem os têxteis, a diversidade de fios utilizados na sua construção, a própria estrutura e composição, a organicidade e portabilidade bem como a capacidade de adaptação a qualquer forma, corpo, função ou suporte, actuando muitas vezes como uma segunda pele, faz deles um material complexo, híbrido, estimulante e contemporâneo.
Nesta exposição não se pretendeu produzir um corpo teórico sobre os têxteis e a sua afirmação no campo da arte. Propusemo-nos, antes, fazer uma deambulação pela linha, material imprescindível na produção têxtil, pensando-a nas suas mais diversas formas (simbólicas ou não), no uso e significado. Existem linhas em quase tudo: de fuga, de articulação… Elas podem ser simultaneamente geométricas e orgânicas. Estamos constantemente a gerar linhas, somos atravessados por linhas, comunicamos pelas linhas. Elas fazem parte da nossa vida, mesmo quando são invisíveis.
Ana Jotta pensa a linha como se ela fosse levada a dar um passeio e assim, utilizando o ponto de Arraiolos, inscreve-a na paisagem, como se observa em “Parti chercher du white spirit ( Walter Swennen )“; Barateiro transforma a linha em palavras, como se ouve na peça sonora, Aprender de Cor, através da voz de Lula Pena, ou em Relaxed Geometry, que a apresenta de um modo orgânico, frouxa, sem tensão, contrariando a habitual rigidez da geometria, numa critica aberta à hegemonia da linha recta tão presente no pensamento ocidental; em Relance, de Alexandre Camarao, a linha é fio, texto, imagem, som; igualmente, a de Mumtazz, desenrola-se e cria toda uma cosmologia de formas e figuras ligadas entre si, em constante comunicação e através das quais a artista, tal como uma Sherazade, nos vai encantando com as suas histórias; por fim, vemos a linha em Eye Liner, de Cunha Ferreira, a autonomizar-se e tornar-se escultórica, submeter-se ao ponto, vibrante, em tensão, adquirindo variações e sonoridades específicas como se de uma partitura se tratasse.
Em quase todos os trabalhos é evidenciada a forte analogia entre texto e têxteis e a relação íntima que existe entre a linguagem e a imagem. Para Tim Ingold, o mesmo gesto e a mesma linha encontram-se presentes no fazer do escritor, do músico, no tecelão, ou mesmo naquele que desenha. Na sua antropologia comparada sobre a linha, Ingold observa que tecer e texto são palavras com a mesma origem epistemológica, do latim texere . Refere esse movimento da esquerda para a direita, de cima para baixo, à medida que a linha se vai desenrolando e preenchendo a superfície, seja ela qual for, deixando atrás de si todo um lastro de traços, desenhos, palavras e notas musicais. Lembra que na Europa, do Séc. XV, uma das caligrafias mais populares chamava-se textura[1].
O que se procurou nesta exposição, foi reunir artistas com uma prática multiforme, em que o ‘complexo sistema linear’ a que Anni Albers se refere fosse explorado e até alargado[2]. Se a linha liga, pois ela vai de um ponto ao outro, com paragens, interrupções, dobrando-se sobre si, criando formas e contornos, ela pode, igualmente, dividir, como no caso das fronteiras, em que uma linha delimita a pertença a uma sociedade, cultura e identidade, como na conhecida obra de Francis Alys, Green Line.
Num mundo cada vez mais sem fios, em que a expressão a linha está ocupada se tornou obsoleta, talvez faça sentido interrogarmo-nos sobre o modo como comunicamos. Potenciámos a comunicação e livrámo-nos dos fios (excepto os dos carregadores). Comunicamos melhor, com mais frequência, com mais diversidade, utilizando imagem, texto, vídeo e conseguimos mesmo manter em simultâneo diferentes comunicações. Mas, ironicamente, este mundo sem fios também nos agarra, prende e invade. Somos até obrigados a comunicar, mesmo sem querer. Será que os fios realmente desapareceram?
Benedita Pestana
Junho 2021
[1] INGOLD, Tim- Lines - A brief history, pp 68-70 - Routledge, 2007, Abingdon
[2] T’Ai Smith, The Event of a Thread, in Textiles Open Letter, pp. 77-78, Sternberg Press, 2015, Berlim